domingo, 19 de agosto de 2018

Travessia Trans Espinhaço (MG) em 15 dias com Equipe Romoaldo - jul/ago/2018

Córrego do Barbado
Essa longa travessia, a mais extensa que já realizei até hoje, nasceu do convite do Renato Romano que com seus amigos da Equipe Romoaldo de Trekking e Montanhismo elaboraram todo o planejamento, desde o roteiro até a organização das refeições e a divisão das barracas e outros equipamentos. Tudo muito bem planejado.

A idéia inicial da equipe era fazer pela primeira vez uma travessia na Serra do Espinhaço com início próximo à cidade de Gouveia-MG e final na Lapinha da Serra, com duração de 6 dias, e possível continuação até a vila de Serra do Cipó (mais 2 dias). Eu topei a empreitada. Mas a minha intenção era continuar caminhando e explorando trilhas ainda desconhecidas (para mim) a partir da Lapinha e essa proposta, feita durante o trekking, despertou a curiosidade de alguns do grupo. Discutimos roteiros e o tempo disponível e cheguei à conclusão que estávamos preparados para empreender uma longa caminhada Trans Espinhaço com o roteiro incluindo uma travessia pelo ParNa Serra do Cipó, meu velho conhecido (e relatado aqui algumas vezes), porém um lugar ainda inédito para os membros do grupo. A nossa Trans Espinhaço portanto passava a ter uma previsão de 12 dias de caminhada. E, claro, de maneira autônoma, carregando tudo nas costas. Mas, como contarei em breve, para mim ela acabou sendo ainda mais longa...

DIA 0 - 23/07/18 - Rumo à Serra do Espinhaço

No Terminal Tietê em São Paulo conheci os membros da Equipe Romoaldo que participariam da caminhada: João, Vitor Honda e Leonardo (Leo), além do Renato Romano que me fez o convite. A representante feminina do grupo era a Bruna.

Embarcamos no Gontijo das 21h30 com destino a Diamantina-MG. Eu tomei um Dramin para dormir logo e não enjoar (viagem de ônibus muito longa assim não me faz bem ao estômago) e só despertei perto do local onde saltaríamos do ônibus, portanto não posso dizer em que cidades o busão parou pelo caminho. 

Rio Paraúna
DIA 1 - 24/07/18 - da BR-259 à cachoeira do Córrego do Bicho

Duração: 7h10 (com paradas)
Maior altitude: 1240m
Menor altitude: 906m

Pela manhã já atravessávamos a paisagem característica do cerrado mineiro, aliás paisagem que fazia alguns anos que eu não via e da qual já sentia muita falta. Por volta de 9h30, entre as cidades de Curvelo e Gouveia, a pedido do Renato o motorista parou no acostamento de terra da BR-259 e ali saltamos. Jogamos as mochilas às costas e retornamos uns 600m até a placa do km 479, onde tomamos um atalho para baixar à estradinha de terra à esquerda. Ajeitamos a carga, mastigamos alguma coisa e demos início à pernada exatamente às 10h15. Altitude de 1237m. Essa localidade se chama Contagem e é marcada pela presença de torres eólicas de energia (do outro lado da rodovia). Até a hora do almoço iríamos caminhar junto ao curso do Córrego Contagem, à nossa direita. E até a chegada ao Rio Paraúna teríamos a imponente Serra do Indaial à nossa esquerda.

Esse primeiro dia seria em grande parte caminhando por uma estradinha de terra e isso já havia sido discutido pelos integrantes da equipe na fase de elaboração do roteiro. Outras vias de entrada foram consideradas mas a facilidade de chegar a esse ponto de início com apenas um ônibus a partir de São Paulo foi decisiva (outros locais de acesso à travessia demandariam ônibus rurais infrequentes ou frete de carro particular). Portanto lá fomos nós pelas estradinhas, felizmente sem movimento algum de veículo. O papo e a curiosidade pela nova paisagem fizeram com que a caminhada fosse muito mais rápida e interessante do que se podia prever.

Durante todo o percurso da nossa Trans Espinhaço o sentido geral percorrido foi de norte a sul. Nesse primeiro dia pela estradinha os pontos que vale destacar foram: às 10h56 cruzamos uma porteira de ferro e uma placa avisava "propriedade particular - entrada proibida", o que foi sumariamente ignorado. Às 11h04 aparece a primeira fonte de água corrente de fácil acesso (o próprio Córrego Contagem) porém deve ser tratada pela presença de gado por perto. Às 11h22 uma placa indica o Sítio Arqueológico Contagem, o que atiça a curiosidade do grupo por ver as pinturas rupestres. Esse é um local de acesso fácil e um patrimônio que precisa ser preservado, portanto tivemos o cuidado de apenas observar e fotografar, sem tocar em nada. Às 12h24 passamos por uma casa à nossa esquerda, uma das poucas vistas, mas estava vazia e em más condições. Paramos para almoçar logo depois à sombra de algumas árvores, com água corrente perto, junto a uma bifurcação onde seguiríamos à esquerda, subindo. A partir desse ponto nos distanciamos do Córrego Contagem. Mas às 14h16, numa outra bifurcação, tomamos a esquerda e logo depois a direita e chegamos à margem do Rio Paraúna, onde o Contagem deságua. Ali paramos mais tempo para curtir o bonito lugar. Estudando o percurso a seguir percebi que poderíamos cortar cerca de 2,2km do caminho pela estrada se cruzássemos o rio. O Renato experimentou a profundidade e correnteza (sem a mochila) e vimos que era viável. Então às 15h15 atravessamos o rio. É recomendável algum tipo de sandália ou crocs para não ferir os pés nas pedras do fundo e o uso de dois bastões ou cajados para se equilibrar na correnteza. Obviamente essa travessia não deve ser tentada em época de chuva pelo maior volume e correnteza do rio e risco de tromba-d'água. Só na outra margem é que pudemos ver que havia uma casa muito próxima, no lado em que chegamos. 

Assim tomamos a trilha na margem esquerda, inicialmente paralela ao rio, mas logo guinamos para uma subida à esquerda. Em 400m de subida atingimos a trilha principal, larga e toda de cascalho. Tomamos a esquerda, ainda subindo. A caminhada por estrada havia acabado, agora a enorme rede de trilhas da Serra do Espinhaço/Serra do Cipó vai nos levar para dentro dos belíssimos campos rupestres, com suas águas límpidas e flores abundantes. Com mais 100m, às 16h07, tomamos a direita na bifurcação. A visão se amplia para o vale do Rio Paraúna a leste. Na sequência eu aproveito para chamar a atenção do pessoal para a característica geológica própria da Serra do Espinhaço que é a disposição das pedras e lajes, desde as mais pequenas até as enormes que formam morros e montanhas, sempre em ângulo de cerca de 45º apontando invariavelmente para o oeste. Não sei qual é a explicação científica para isso mas essa imagem nos acompanhou durante toda a longa caminhada, sendo mais notada nas travessias de rios e na conformação em "degraus" das cachoeiras ao longo do caminho.

Tivemos curiosidade de conhecer a Cachoeira do Apertado, mas não encontramos a trilha de acesso e o horário já não nos permitia procurá-la ainda nesse dia. Chegamos à área de acampamento junto ao Córrego do Bicho às 17h26 e estabelecemos nosso primeiro hotel-um-milhão-de-estrelas ali mesmo. Altitude de 1055m. Desde o Rio Paraúna passamos por mais dois pontos de água, afluentes do Córrego do Bicho.

Honda, Renato, João, Leo e Bruna
DIA 2 - 25/07/18 - da cachoeira do Córrego do Bicho a suas nascentes

Duração: 7h10 (com paradas)
Maior altitude: 1421m
Menor altitude: 1055m

Nessa manhã ocorreu um fato muito curioso e inédito para mim em tantos anos de trekking. Logo cedo, ao caminhar alguns metros a partir do acampamento encontrei uma tampa de panela. Perguntei se era do grupo e a resposta foi afirmativa. Porém cadê a respectiva panela? Havia sumido. Ela havia ficado de molho fora da barraca e algum bicho a havia surrupiado durante a noite bem embaixo dos nossos narizes! Vasculhamos os arredores e nada, nem pegadas. Desistimos da procura e tratamos de desarmar tudo para continuar a caminhada. Partimos às 9h20. Subimos na direção sudoeste (oposta ao Córrego do Bicho) e em 5 minutos encontramos a tal panela... toda mordida e até furada pelos dentes do animal. Não conseguimos identificar as pegadas que havia, mas a história já entrou para o anedotário dos nossos trekkings. E ainda tivemos que carregar uma panela inutilizada por mais 5 dias até a Lapinha...

Às 9h36 cruzamos uma porteira e fomos à direita na bifurcação seguinte pois o caminho seria mais curto do que pela esquerda. Subimos pela trilha de pedras brancas soltas. Cruzamos uma tronqueira às 10h04, paramos para um pequeno descanso numa exígua sombra e às 11h23 cruzamos uma porteira velha com uma lacônica placa "proibido caçar"... então tá. Cerca de 400m depois outra formação rochosa nos atraiu para investigar se havia mais pinturas rupestres mas dessa vez só encontramos uma lapa, uma grande pedra formando um abrigo, onde quase pisei numa cobra sem ver. Às 12h36 pudemos visualizar no horizonte pela primeira vez a Serra da Lapinha/Serra do Breu com seus famosos picos nos dando a direção exata da vila de Lapinha da Serra. Na descida que se seguiu desviamos para o vale à direita para procurar um lugar com água para almoçar. E encontramos um ótimo local de sombra na mata de galeria do Córrego da Passagem.

Retomamos a caminhada às 14h30 retornando à trilha principal exatamente onde havia uma tronqueira e se avistava uma casa no vale onde almoçamos, do Córrego da Passagem. Continuamos na direção sul. Às 15h16 cruzamos uma porteira junto a um riacho, afluente ainda do Córrego do Bicho, e paramos para descansar. A idéia inicial era acampar junto a essa água, mas continuamos pois ainda era cedo. Uns 450m após a porteira fomos à direita na bifurcação e com mais 300m abandonamos o caminho largo que fazia uma curva para a esquerda indo para leste - em vez disso cruzamos o capim no sentido sudeste até encontrar uma trilha na direção desejada. Cruzamos uma tronqueira às 16h09 e avistamos uma casa à esquerda junto a altos eucaliptos, porém ainda distante. Tanto a bifurcação anterior quanto o caminho que ia para leste levariam diretamente a essa casa. 

Às 16h30 percebemos que nosso caminho continuaria por uma crista onde seria improvável haver água, então decidimos nos abastecer no vale logo abaixo para passar a noite ali mesmo. Altitude de 1325m. Do alto onde acampamos se via ainda a casa, agora mais próxima, mas não fomos até ela na dúvida se havia gente ou não, ou se seríamos bem-vindos ou não. À noite vimos luz na casa, confirmando a presença de morador. 

Vale do Rio Preto
DIA 3 - 26/07/18 - das nascentes do Córrego do Bicho ao Rio Preto

Duração: 4h30 (com paradas)
Maior altitude: 1363m
Menor altitude: 1100m

Nessa noite todas as panelas foram devidamente guardadas nas barracas e não perdemos mais nenhuma para o lobo-guará, jaguatirica, onça ou sei-lá-que-bicho. 

Partimos às 8h46 na direção sul-sudeste para reencontrar a trilha principal abandonada na tarde anterior. Às 9h10 cruzamos uma cerca por baixo e caminhamos por campos abertos com larga vista dos arredores. Para trás à esquerda logo foi possível ver o divisor de águas do Córrego do Bicho, que estávamos deixando, e do Córrego do Barbado, que passamos a percorrer. Às 10h paramos para descanso por 15 minutos. Na continuação o Córrego do Barbado faz uma curva para a direita (sudoeste) e a trilha o cruza, porém nessa travessia às 11h33 um pequeno acidente: o Leo escorregou nas pedras lisas do riacho e caiu, mas nada sério felizmente. A partir daí começamos a avistar na serrinha do outro lado do vale à nossa direita o caminho para a vila de Fechados, mais notadamente a trilha de pedras brancas que sobe essa serra e tem o nome de Subidão do Miltinho. Paramos às 11h55 na beira do penhasco para apreciar a belíssima e ampla paisagem dos vales do Córrego Samambaia e do Rio Preto, o qual cruzaríamos na sequência (já me disseram que Córrego Samambaia é uma denominação errada da carta do IBGE e que o nome correto é Córrego Andrequicé).

Nessa descida ao Rio Preto avistamos uma casa isolada ao pé da serrinha à esquerda. Logo depois de um entroncamento a trilha se torna mais pisada dando clara indicação de que passamos a percorrer um caminho bastante usado em travessias com destino a Fechados. A travessia do Rio Preto às 13h15 não teve nenhuma dificuldade pois foi através das lajes pontudas típicas da região (mais abaixo o rio é largo e fundo). Paramos para o almoço mas o lugar é tão lindo e convidativo que resolvemos passar o restante da tarde e acampar ali mesmo. O encontro com algumas capivaras na chegada deixou o Leo meio preocupado, mas elas logo sumiram. Altitude de 1112m.

Serra da Lapinha/Serra do Breu 
DIA 4 - 27/07/18 - do Rio Preto ao encontro com o seu Jair

Duração: 8h25 (com paradas)
Maior altitude: 1444m
Menor altitude: 1100m

A partir do Rio Preto evitamos o caminho mais fácil e direto ao Poço do Soberbo para não passar na sede de uma fazenda onde o dono já intimidou trilheiros com cachorro bravo e disparos de arma, segundo relato que lemos na internet. Por isso planejamos um caminho por uma região mais alta, longe da sede dessa fazenda.

Partimos às 9h na direção sul subindo a encosta e logo notamos marcas de pneu no caminho (!?). Na descida que se seguiu fomos à direita na bifurcação pois o caminho pareceu mais usado e um pouco mais curto que à esquerda. Às 9h43 cruzamos um afluente do Córrego dos Piões, mas com muito pouca água, e apenas 400m adiante cruzamos uma porteira de arame aberta. Com mais 300m, às 10h, alcançamos o próprio Córrego dos Piões, com água corrente e fresca. Ele corre para o norte e deságua no Rio Preto bem próximo do local onde cruzamos este último na tarde anterior. Notamos uma plantação à esquerda, com pés de cana recém-cortados. Paramos numa sombra mais à frente junto ao Piões e degustamos alguns pedaços de cana antes de subir por um corredor entre cercas na direção da casa, onde cachorros nos denunciaram. Mas eles eram mansos e só queriam brincar. Cruzamos uma tronqueira e continuamos em frente sem ver ninguém da casa. Antes dela passamos pela cerca da direita e tomamos a trilha pelo pasto com vacas, mas de olho num touro quieto e desconfiado que havia ali. Na porteira seguinte vimos a placa de "Fazenda Pinhões da Serra". Essa porteira tinha um sistema curioso de fechamento automático por meio de uma pedra pendurada num fio - a engenhosidade das pessoas do campo sempre nos surpreendendo. Depois notei que havia uma estradinha chegando a essa casa pelo outro lado. E uma trilha bem marcada vai dessa casa para oeste à casa do seu Álvaro, com sua capela de pedra, que menciono no relato da travessia Lapinha-Fechados (https://trekkingnamontanha.blogspot.com/2014/07/travessia-lapinha-fechados-serra-do.html). 

Apenas 200m separavam a porteira anterior (a da pedra) de outra e pela vegetação alta não pudemos notar que havia uma casa acima à esquerda. Cruzamos dois afluentes do Córrego dos Piões, o primeiro com escassa água. No segundo notei à esquerda a trilha que vem do povoado de Extrema, uma outra travessia bem interessante dessa região. Apenas 50m após a porteira seguinte, às 11h, abandonamos a trilha bem marcada que se dirigia a um casebre e começamos a subir a encosta à esquerda. Porém avistei um pé de fruta no quintal da casa e fui lá olhar. Era um pé carregado de deliciosas laranjas e colhi cerca de 30 delas, com fartura para todos terem sobremesa nesse dia e nos seguintes! Essa casa tem uma bica de água também.

Com isso me atrasei um pouco em relação ao grupo, que já havia subido a encosta. Inicialmente sem trilha, subi e aos poucos encontrei o caminho marcado na direção sul, o qual adentrou uma mata densa que serve como galeria para o Córrego dos Piões, que cruzei num salto. Na subida que se seguiu reencontrei o pessoal às 11h52 preparando o almoço numa sombra junto a um dos riachos formadores do Piões. Partimos às 13h14 ainda na direção sul e na subida cruzamos uma porteira de arame. Cerca de 600m após essa porteira uma trilha atravessou o nosso caminho no sentido leste-oeste, mas nos mantivemos na direção sul-sudeste (praticamente sem trilha) até o ponto mais alto, às 13h50, com visão muito larga do horizonte em 360º e onde alguns integrantes até tentaram sinal de celular, mas sem sucesso. Esse caminho é povoado de canelas-de-ema-gigantes (planta típica dos campos rupestres) que formam verdadeiras árvores. Continuamos na direção sul pelo campo aberto e cruzamos às 14h52 um afluente alto do Córrego Cachoeira, o qual corre num degrau bem abaixo na Serra do Espinhaço e passa na sede da fazenda que evitamos. Essa travessia de rio aparenta ter de tirar as botas e entrar na água, mas há um ponto exato em que se cruza pelas pedras tranquilamente.

Na subida seguinte havia diversas trilhas que tomamos e abandonamos, mas continuamos mantendo o rumo sul-sudeste para evitar os caminhos que descem à casa da fazenda. Às 16h22 cruzamos uma cerca sem porteira e logo avistamos um homem a cavalo reunindo o gado ainda um pouco distante. Nos escondemos porque não sabíamos a direção que ele iria tomar e não queríamos espantar o gado, deixando o homem furioso conosco. Quando ele se foi voltamos à trilha. Às 16h50 cruzamos um afluente do Córrego do Quartel e no alto tivemos uma espetacular visão da Serra da Lapinha/Serra do Breu.

Às 17h25, faltando 15min para o sol se pôr, o Renato e o Honda, que estavam à frente, abandonaram a trilha e desceram a um vale à esquerda para procurar água e um possível local de acampamento. Por sorte encontraram os dois, um ao lado do outro, para passarmos a noite. Era um afluente do Ribeirão Soberbo. Altitude de 1244m.

Nesse acampamento outro "causo" entrou para o rol de histórias da nossa travessia. Era noite de eclipse da lua cheia. Todos admirando o acontecimento quando surge do escuro um homem, acende uma lanterna ao nosso lado e começa a falar conosco. Todos paralisaram, eu não entendi o que estava acontecendo. Da minha barraca pensei que fosse algum integrante do grupo imitando a fala do povo do lugar. Mas não. Era o dono das terras, o mesmo que vimos reunindo o gado, que viu as luzes e veio ter um dedo de prosa conosco. Felizmente era muito simpático e não se importou nem um pouco com a nossa presença ali. Pelo contrário, foi buscar uma cachaça feita por ele mesmo para nos oferecer e ficar proseando. Seu nome: seu Jair.

Poço do Soberbo e Cânion do Rio das Pedras
DIA 5 - 28/07/18 - do encontro com o seu Jair ao Poço do Soberbo

Duração: 7h15 (com paradas)
Maior altitude: 1248m
Menor altitude: 911m

Desmontamos acampamento às 8h45 e, em lugar de voltar ao ponto onde abandonamos a trilha no dia anterior, seguimos o curso do riacho ao lado e encontramos um primeiro poço do Ribeirão Soberbo. Por votação não fomos a esse poço tomar banho, para frustração do Renato. Mas continuamos o curso desse rio e resolvemos cruzá-lo para a margem esquerda. Ali havia outro poço enorme e nesse paramos para um banho às 9h24. Depois seguimos menos de 200m rio abaixo e o cruzamos de novo às 10h34. Não estávamos encontrando uma trilha definida na direção que queríamos e nessa hora quem ressurge do nada? o seu Jair em seu cavalo. Ele nos levou até a beira de uma ribanceira e nos ensinou o caminho para encontrar a trilha principal que levaria ao Poço do Soberbo. Em seguida sumiu galopando. 

Essa descida foi um pouco demorada e ruim pois não havia trilha (só no alto) e alguns trechos eram muito íngremes em meio ao mato crescido e degraus altos de pedra. Enfim às 12h alcançamos novamente o Ribeirão Soberbo e paramos para o almoço. O sol já estava castigando e aproveitamos para nos refrescar, porém na quedinha d'água o Renato teve o cabelo tomado pelas larvinhas pretas que infestam o lugar.

Retomamos a caminhada às 13h54 e cruzamos o rio mais abaixo, tomando a direção sul. Subimos pelo campo sem trilha e encontramos às 14h13 a trilha principal que vem da Cachoeira do Bicame e desce ao Poço do Soberbo. Ela segue em nível pela encosta da serra e desce pouco antes de cruzar o Rio das Pedras num local de fácil travessia pelas lajes pontudas, às 14h58. Já se avistam lá embaixo as três casinhas antigas de pedra construídas ao lado do Poço do Soberbo. Depois do Rio das Pedras seguimos por mais 80m em nível e começamos a descer, ou melhor despencar, paredes abaixo em direção ao Córrego Fundo. Fizemos a descida lentamente pois alguns "degraus" são bastante altos e é preciso cuidado. Chegamos enfim às margens do Córrego Fundo às 15h40 e procurei o ponto fácil de travessia que conhecia. Porém tivemos que varar um pouco de mato para encontrar a trilha. Na outra margem restos de acampamento. E alguns metros além o caminho largo de vem da Lapinha da Serra (esq) e leva ao Poço do Soberbo (dir). Seguimos para a direita, chegando ao poço às 16h. O resto de maquinário e caçambas usados na mineração antiga do lugar causou um pouco de decepção a quem não conhecia o poço. Altitude de 911m.

Poço do Soberbo
DIA 6 - 29/07/18 - do Poço do Soberbo à Lapinha da Serra

Duração: 6h30 (com paradas)
Maior altitude: 1222m
Menor altitude: 881m

Nesse dia o Leo resolveu partir mais cedo por compromissos que tinha em São Paulo. Depois soubemos que ele conseguiu uma série de caronas e à noite já estava em casa. Feito inédito: dormir uma noite junto ao Poço do Soberbo e na noite seguinte na cama de casa!

Nós, que não tínhamos pressa, começamos o dia explorando o cânion do Soberbo e suas quedas-d'água (na verdade é o Rio das Pedras e não o Ribeirão Soberbo). Encontramos pegada grande de felino. Notamos diversos grampos nas paredes mais abaixo do cânion, indicando a prática de escalada/rapel. De volta, desmontamos acampamento e saímos às 9h57 na direção sul-sudeste ainda. Na areia do caminho para a Lapinha mais pegadas grandes de felino. 

Cruzamos o Córrego Fundo quatro vezes e na última às 11h40 passamos pelo gramado de uma casa vazia. Há também uma bica de água no terreno da casa e esses são os últimos pontos para abastecer os cantis com água boa até a chegada à Lapinha, distante ainda 14km. Menos de 50m depois do gramado da casa há uma bifurcação, na verdade uma trilha sai à direita do caminho largo. O gps indicava que a trilha da direita era mais curta, mas resolvemos nos manter no caminho principal. Subimos bastante e às 12h46 aquele caminho da trilha da direita reencontra o caminho mais largo - fomos para a esquerda então. Pelo calor e pela secura desse trecho apelidamos essa parte da caminhada de Trans Saara. Paramos numa rara sombra para descansar mas sem sinal de água por perto. 

Às 14h chegamos a duas porteiras lado a lado. Cruzamos e do outro lado uma placa adverte "propriedade particular - visitação controlada - entrada proibida". O povo aqui adora proibir tudo. Ali o caminho largo se converte numa estradinha de pedrinhas já em condições de tráfego. Uma outra estradinha desce à esquerda junto às porteiras e leva a uma casa na baixada. Mais à frente essa estradinha entronca à esquerda. Às 14h24 alcançamos uma porteira que dá para a estrada principal que vem da Lapinha. Estava com cadeado e passamos pela cerca de tábuas. Do outro lado da porteira outra placa "propriedade particular - visitação controlada". E na porteira ao lado uma placa muito velha e coberta de ferrugem da Fazenda Cachoeira. Tomamos a estrada de terra para a direita e entramos no vale do Córrego Lapinha, com uma bonita serra do outro lado à nossa esquerda. Às 14h54 cruzamos uma porteira com uma grande mangueira e casas ao lado. Às 15h mais uma porteira e paramos para descanso numa sombra. Às 15h44 chegamos à bifurcação que vai para a Lapinha à esquerda e para Santana do Riacho à direita. A quantidade de carros saindo da Lapinha era enorme e fomos comendo poeira até lá, sob os olhares incrédulos do povo que passava de carro e se espantava com um grupo de 5 mochileiros - ou seriam peregrinos, ou pagadores de promessa, ou extra-terrestres mesmo?

Quilos de poeira depois, às 16h28 chegamos à Lapinha e parecia que não havia ninguém ali que não estivesse bêbado. Estava acontecendo o 19º "arraiá" da Lapinha, por isso a quantidade enorme de carros e a embriaguez geral. Procurei um lugar para comermos e passarmos a noite e encontrei boa comida (e camping totalmente vazio) no restaurante da Dona Lina, na saída para as cachoeiras. Conseguimos wifi também. Altitude de 1102m.

E assim se encerrou a primeira etapa do nosso trekking Trans Espinhaço. Prontos para a segunda etapa?

Alguma espécie de bromélia
DIA 7 - 30/07/18 - da Lapinha da Serra à casa isolada no alto da serra

Duração: 2h20
Maior altitude: 1262m
Menor altitude: 1096m

Nesse dia a Bruna e o João conseguiram um carro para Santana do Riacho (não há ônibus na Lapinha) e por volta de 13h eles zarparam, após almoçarmos. Antes disso, pela manhã, eu, Renato e Honda fomos à mercearia comprar pães, bolachas e lanchinhos para os próximos 6 dias previstos de caminhada. Procuramos um queijo meia cura para levar e encontramos na casa da Dona Maria. Nós 3 deixamos a Lapinha às 13h25 com um sol de rachar. Nosso objetivo era atingir o Alto do Palácio até o dia seguinte para na sequência fazer a travessia Alto do Palácio-Serra dos Alves com a devida autorização do parque nacional obtida naquela manhã mesmo. Mas depois alteramos um pouco esse roteiro para torná-lo mais interessante para os dois que estavam visitando o parque pela primeira vez. 

Tomando o caminho da Cachoeira do Lajeado pelo vale do Córrego Mata-Capim, ainda no nosso rumo sul-sudeste, cruzamos duas porteiras e desprezamos a subida desgastada da travessia Lapinha-Tabuleiro pois não seria a mais conveniente para o nosso roteiro. Atravessamos um riozinho fundo por uma pinguela mais à direita e cruzamos mais duas porteiras. Ao pararmos às 14h32 num riacho para tomar uns goles de água o Renato se lembrou de ter deixado o celular carregando no restaurante. Teve de voltar para buscar e isso retardou nossa pernada. Só retomamos a caminhada às 16h20. Cerca de 10 min depois entramos numa trilha à esquerda do caminho da Cachoeira do Lajeado e começamos a subir a serrinha. No alto atravessamos um lindo e enorme campo e cruzamos uma porteira e um riacho pelas pedras, um afluente do Córrego Mata-Capim. Alcançamos uma casa isolada com diversas portas fechadas a cadeado. Já eram 17h34, o sol estava quase se pondo, e resolvemos acampar no riacho um pouco além da casa, na baixada. Altitude de 1233m.

Poço inferior da Cachoeira da Capivara
DIA 8 - 31/07/18 - da casa isolada no alto da serra ao Alto do Palácio

Duração: 9h47 (com paradas)
Maior altitude: 1423m
Menor altitude: 1110m

Nesse dia nós três fizemos "pensamento positivo" para cruzar a área particular da empresa Cedro sem nenhum problema com os seguranças, porém no final foi muito mais tranquilo do que podíamos imaginar.

Deixamos o acampamento às 8h13, cruzamos o riacho ao lado, uma porteira e continuamos no nosso infalível rumo sul-sudeste. Uma placa azul ao lado dessa porteira avisa  "propriedade particular - proibido boi, cavalo, pesca - Sr Edo Poli". Às 8h48, quando a trilha se aproxima de uma estradinha que vem do norte, saímos dela para a esquerda pois eu estava curioso em saber se ainda existia uma casa abandonada em meio a alguns eucaliptos. Sim, a casa está em condições bem precárias mas ainda está lá em pé. Retomamos a caminhada pela estradinha (e não pela trilha de onde viemos) mas 500m à frente cruzamos uma porteira à direita para pegar uma trilha que logo derivou para a direita. Nessa porteira também uma placa de "propriedade particular - proibido...". Às 9h27 outra porteira e placa cheia de proibições citando o nome da Cedro, mas nenhuma delas diz que é proibido entrar ou passar. Cerca de 120m após essa porteira tomamos a esquerda na bifurcação para nos manter no alto da serra e evitar caminhar pelas estradas internas da Cedro. Na subida pelo campo ainda a linda visão dos picos da Lapinha e do Breu para trás. Às 10h07 cruzamos outra porteira e dispensamos a trilha à esquerda pelo motivo mencionado. Às 10h30 surge a primeira água desde o acampamento, porém estava quase parada e não coletamos. Uns 450m depois chegamos a uma porteira azul e ali sim começaríamos a descer à esquerda para a área central da Cedro, no vale do Rio Parauninha.

Após um descanso e lanche numa rara sombra cruzamos a porteira azul às 11h22 e abandonamos por algum tempo a direção sul-sudeste para tomar o rumo leste a fim de cruzar o Rio Parauninha no local mais adequado, na chamada Ponte Molhada. Cerca de 1,4km após a porteira azul, ao encontrarmos uma tronqueira, não a cruzamos pois a trilha apontava para o norte - em vez disso acompanhamos a cerca para a direita (sudeste). Subimos na direção de uma linha de energia no alto, cruzamos uma cerca por baixo, continuamos para leste e chegamos às 12h09 a uma estradinha de terra, onde fomos para a esquerda, descendo. Apareceu um carro, mas passou por nós e apenas nos cumprimentou. Na curva para a esquerda tomamos um atalho por trilha à direita. Caindo de novo na estradinha fomos para a direita. Logo um caminhão de entrega passou por nós mas não parou. Chegamos às 12h42 à Ponte Molhada do Rio Parauninha, que tem esse nome porque em dia de chuva forte ela pode ficar coberta pela água. Paramos para pegar água e comer um sanduíche como almoço. Às 13h33 continuamos pela estradinha poeirenta num calor bem forte, mas logo aquele primeiro carro estava de volta e nos ofereceu carona na caçamba. E lá fomos nós, passamos pelas casas dos funcionários e cruzamos tudo rapidamente. Essa carona nos poupou 3,4km de pernada, cerca de 1h que aproveitamos depois num banho num poção do Ribeirão Capivara. Descemos na bifurcação para a Cachoeira da Capivara. Eles seguiram para a vila do Cipó à direita e nós rumamos para a cachoeira à esquerda, às 13h52. Mais placas de proibição e dessa vez restringindo mesmo a entrada e passagem, mas são placas muito antigas e o homem no carro disse que visitou a cachoeira recentemente sem problemas. 

Cerca de 300m depois surge uma bifurcação: à direita, segundo o gps (nunca fui conferir), se chega à estátua do Juquinha, mas eu preferi mostrar aos amigos a cachoeira, então seguimos para a esquerda, descendo. O caminho vai se estreitando e às 14h03 cruzamos por uma ponte um afluente do Ribeirão Capivara (água boa). Às 14h24 paramos no tal poção do Ribeirão Capivara para um banho. Dispensamos o banho na cachoeira para evitar problemas. Às 15h37 voltamos à trilha e mais uma placa de proibição aparece. Cruzamos dois riachos no fundo de valas através de pinguelas de madeira bem conservadas e às 15h50 alcançamos o poço inferior da Cachoeira da Capivara. Tiramos algumas fotos e partimos para a íngreme subida à parte alta. Ao nos aproximarmos da trilha principal que vem da rodovia MG-010 largamos as mochilas e fomos apenas com as garrafas de água até o poço da queda superior para coletar água para esta noite e metade do dia seguinte. Mais algumas fotos e não nos demoramos pois ainda tínhamos alguma distância até o local do acampamento. Subimos de volta até as mochilas e agora mais pesados continuamos ascendendo até a porteira da fazenda na rodovia MG-010. Nesse caminho vale destacar que a casa-sede se torna visível, ou seja, o pessoal da casa vê quem entra e quem sai da cachoeira. Bom registrar também que há um riacho de água até mais pura que a da cachoeira nesse trecho. Cruzamos uma cerca por baixo, subimos mais e alcançamos a porteira principal, saindo da fazenda exatamente na hora de um espetacular pôr-do-sol, às 17h27. As placas de cachoeira interditada e acesso proibido continuam lá. 

Estávamos no ponto mais alto da rodovia MG-010, local conhecido como Alto do Palácio. Cruzamos a pista e caminhamos para a esquerda por 250m entrando numa porteira de arame (aberta) à direita. Seguimos pelo caminho largo por 200m e entramos à direita na bifurcação. A noite já caía. Apressamos o passo até subirmos um morrote com uma torre de antena e uma estação meteorológica. Ali às 18h encontramos terreno plano e com capim mais baixo para acampar. Altitude de 1423m. Dali se avista a sede do Alto do Palácio do parque nacional a cerca de 900m, às margens da rodovia, e à noite uma luz acesa indicava haver algum funcionário presente. 

Travessão
DIA 9 - 01/08/18 - do Alto do Palácio até (quase) a Casa de Tábuas

Duração: 8h35 (com paradas)
Maior altitude: 1488m
Menor altitude: 1034m

Ao amanhecer pudemos ver melhor quão bonito era o lugar que escolhemos para passar a noite. A visão se estendia até o horizonte muito distante e pude identificar facilmente lugares como Duas Pontes e o Cânion das Éguas, além da Serra da Lapinha/Serra do Breu que deixamos para trás.

Levantamos acampamento às 8h20 na direção sul seguindo a cerca. O mais conveniente aqui é cruzar logo a cerca próximo à estação meteorológica e seguir pelo lado esquerdo dela, com trilha mais bem definida do que do lado direito. Na sequência de sobe-desce da crista encontramos às 9h38 a primeira marcação da trilha, uma estaca fina de madeira com a ponta pintada de amarelo. Lembrando que estávamos iniciando a travessia Alto do Palácio-Serra dos Alves, a única liberada pelo parque e com a devida autorização obtida pela internet. Muitas outras estacas amarelas ainda iriam aparecer mas percebemos que em lugares críticos de bifurcação ou ausência de trilha elas não estão colocadas para orientar. Ou seja, a sinalização é precária e não se pode fiar somente nela para empreender essa travessia. 

Às 9h45 chegamos a outro belíssimo mirante, desta vez com vista para a baixada onde se encontra o Travessão. No horizonte ao sul se avista o pico mais alto do parque nacional, com 1703m de altitude mas sem nome. A trilha bem marcada imediatamente inicia a descida em direção ao Travessão. Às 10h28 mostrei aos amigos as pinturas rupestres de uma lapa ao lado da trilha, felizmente ainda muito bem preservadas e sem sinais de depredação. Na bifurcação ao lado da lapa fomos para a esquerda, continuando para sul-sudeste (a direita sobe para Duas Pontes, na MG-010) e descendo mais. Me espantei com a escassez de água do dois riachos que cruzamos. O fluxo era tão baixo que preferimos não coletar a água, a primeira encontrada nesse dia. Descemos até o Travessão às 11h10, deixamos as mochilas e tomamos a trilha em direção ao poço próximo para ter água com um pouco mais de vazão. Assim mesmo tratamos a água antes de beber. Essas águas são todas formadoras do Córrego Capão da Mata. Além de toda beleza cênica inerente ao Travessão, expliquei a eles a importância geográfica daquele lugar, um grande divisor de bacias hidrográficas do Brasil. As águas que fluem para o leste formam o Rio do Peixe que deságua no Rio Preto do Itambé, depois no Rio Santo Antônio e no Rio Doce, que encontra o mar no estado do Espírito Santo. Já as águas que vertem para o oeste, a poucos metros, formam o Córrego Capão da Mata, que deságua no Rio da Bocaina, que se junta ao Rio Mascate formando o Rio Cipó, o qual deságua no Rio das Velhas e depois no Rio São Francisco, encontrando o mar entre Sergipe e Alagoas. Um lugar fascinante!

Deixamos o Travessão às 12h24 subindo em direção sul por trilha bem marcada, cruzamos o Rio do Peixe uma vez e paramos ao encontrá-lo novamente mais acima, já no final da subida às 13h. Ali a água era abundante e de ótima qualidade. Paramos para o almoço. Retomamos a pernada às 15h ainda por trilha definida na direção leste, cruzamos uma valeta e 600m à frente a trilha se encaminhou para a direita (sul). Nessa hora resolvemos abandoná-la pois a minha idéia era caminhar sempre pelas cristas mais altas da porção leste do parque, com visual mais amplo e bonito. Voltamos a caminhar na direção leste e nordeste, sem trilha mas sem dificuldade e subimos a encosta no fundo do vale onde o Rio do Peixe se forma. Ali no alto às 15h40 o tempo começou a mudar e o sol forte que havia foi substituído por um céu encoberto, vento úmido e respingos. Já tinha visto esse filme antes no mesmo cinema. Essa região alta do parque é bastante sujeita a neblina e mau tempo, e isso se confirmaria no dia seguinte. Mas prosseguimos sem problema pois não passava (por enquanto) de alguns pingos de chuva bem ralos. Navegamos visualmente na direção sul-sudeste novamente escolhendo onde havia caminho mais desimpedido de vegetação e pedras, sempre tentando manter a altitude e não baixar ao vale à esquerda antes da hora. Para trás podíamos ver as montanhas até há pouco ensolaradas agora com um véu branco de chuva. Onde estávamos não nos molhamos e ainda ganhamos de brinde um lindo e completo arco-íris no céu. Passamos por poços de água parada e atingimos às 16h53 o mirante onde se avista o vale do Rio da Bocaina. Procuramos um lugar para acampar. Subindo um pouco mais à esquerda avistamos um foco de mata e logo abaixo um riacho (afluente do Rio da Bocaina), ao qual baixamos e estabelecemos nosso pernoite às 16h56. Altitude de 1420m.

Algum tempo depois de dormirmos ouvi uma agitação na barraca ao lado: o Honda disse ter ouvido algo como um bicho rondando a barraca e ele e Renato saíram para ver o que era. Mas foi alarme falso. Acho que o trauma da panela do primeiro acampamento ainda paira sobre nós.

Renato e Honda contra o pôr-do-sol
DIA 10 - 02/08/18 - da (quase) Casa de Tábuas ao Córrego Mutuca com neblina total pela manhã

Duração: 8h50 (com paradas)
Maior altitude: 1675m
Menor altitude: 1333m

Amanhecemos dentro de uma nuvem... visão de 50m num dia em que navegaríamos totalmente pelo visual pois não havia trilha e não levamos os tracklogs (essa extensão da travessia, como disse, foi imaginada durante os primeiros dias do trekking). Mesmo assim tentamos. Levantamos acampamento às 8h50 e seguimos na direção sul-sudeste. Eu me lembrava que deveríamos tomar a direção oeste logo após cruzar uma faixa de mata (com água corrente) mas sem enxergar nada foi impossível saber o ponto exato. Encontramos uma trilha mas achei que ela ia na direção oposta, isso tudo com visibilidade de poucos metros. Discutimos novamente o que fazer e decidimos que não valia a pena bater cabeça na neblina para ir pelas partes altas que eu conhecia se não iríamos ver nada, então resolvemos descer daquele ponto à Casa de Tábuas, primeiro ponto de acampamento "oficial" da travessia autorizada e onde reencontraríamos a trilha batida e os tracklogs que levávamos. Dessa maneira traçamos uma reta na neblina e torcemos para que nada obstruísse o nosso caminho até a casa. Por sorte foi bem mais fácil do que pensávamos e às 9h55 chegamos à Casa de Tábuas. Ela tem fogão a lenha, panelas, 4 camas/tablados de madeira e bancos para sentar. Havia alguns alimentos deixados por trilheiros e também contribuímos com comida excedente para uso dos futuros excursionistas. Há uma bica do lado de fora, em frente à varanda. O Rio da Bocaina corre a poucos metros da casa.

Deixamos o local às 10h35 ainda sob forte neblina e um pouco de garoa tomando a direção sudeste (depois sul) no canto posterior da casa. Seguimos pela trilha subindo muito e eu não tinha noção exata de onde estávamos pois não se via nada. Pegamos a esquerda nas duas bifurcações que surgiram. Logo após cruzarmos uma tronqueira às 11h24 avistamos muitos bois, o que não é permitido dentro de uma área de preservação pois é danoso à fauna e flora silvestres. Mais à frente paramos para lanchar quando a garoa deu uma trégua. A neblina começou a abrir e percebi que estávamos aos pés do pico mais alto do parque nacional, aquele de 1703m sem nome. Mas não valia a pena atacá-lo pois a neblina no alto dele ainda era forte. Apesar de não subir o pico vale registrar que esse foi o ponto mais alto de toda a travessia, com 1675m. Caminhamos ainda bastante tempo sem enxergar muito longe e seguindo a trilha ou, na ausência dela, o tracklog que tínhamos. Às 13h04 abandonamos o caminho que ia para sudeste e descemos à direita (sudoeste), cruzando uma cerca aberta. Logo a trilha voltou ao rumo sul. 

Somente por volta de 13h30 o tempo abriu de vez e o sol saiu. Tiramos as roupas de chuva e pudemos visualizar enfim tudo ao redor para nos localizar. Caminhamos na direção de uma mata à frente (um pouco à direita), cruzamos uma cerca, saltamos um charco e chegamos às 14h57 a uma porteira com uma plaquinha quebrada onde se lê com dificuldade "currais 1km". Cruzamos a porteira e continuamos (para oeste) pela trilha bem marcada que entrou na mata, onde o chão de barro estava bastante escorregadio. Ao sair da mata caminhamos mais 160m e alcançamos a Casa dos Currais às 15h14. Fomos alardeados pelos cachorros (cães dentro de um parque nacional... que lástima!) e em seguida recebidos pelos dois brigadistas que estavam ali naquele momento. Na temporada da seca, com maior risco de incêndios, eles ficam em sete homens na casa durante uma semana, depois revezam com outros sete. Os outros cinco haviam saído e não os conhecemos. Proseamos um pouco e nos ofereceram café, pão e bolachas. Contamos um pouco da nossa saga de 10 dias e eles nem conheciam os lugares por onde passamos. Essa casa é o segundo acampamento "oficial" da travessia autorizada pelo parque e o espaço para as barracas é nos currais (sem vacas, mas com cachorros) ao redor da casa. O Córrego Mutuca passa bem próximo da casa.

Às 16h nos despedimos dos atenciosos brigadistas, cruzamos a porteira no canto sudoeste da casa e tomamos a trilha bem batida no rumo oeste para um final diferente e bem mais interessante que Serra dos Alves. Nesse caminho paramos por 35min para preparar uma refeição rápida pois estávamos com muita fome. Às 17h03 cruzamos o Córrego Mutuca pelas lajes pontudas e seguimos por sua margem direita por cerca de 800m. Esse lugar é muito bonito e o Mutuca despenca em graciosas e fotogênicas quedinhas. Ao nos afastarmos um pouco do rio a trilha tomou a direção sul e tivemos de abandoná-la, seguindo para oeste ainda. Descemos por um campo com trilhas mal definidas e reencontramos o Mutuca às 17h42. O sol já havia se posto e era hora de procurar um chão plano para as barracas. Cruzamos o rio pelas pedras e subimos pela trilha bem marcada por 200m, até um ponto em que o capim era baixo e pudemos armar acampamento. Altitude de 1343m.

Planta abundante na Serra do Cipó
DIA 11 - 03/08/18 - do Córrego Mutuca ao Ribeirão Bandeirinha

Duração: 1h30 até a cachoeira, depois foram explorações sem sucesso
Maior altitude: 1361m
Menor altitude: 1132m

Deixamos o acampamento às 8h42 e seguimos pela trilha bem marcada na direção noroeste (mas nosso sentido geral ainda seria oeste por quase 1h). Logo cruzamos uma estreita faixa de mata. Cerca de 800m depois dessa mata a trilha nos levou para dentro de outra matinha e desapareceu. Voltamos um pouco e tomamos uma trilha que cruzava o caminho na direção sudoeste. Logo entramos em outra mata que percorremos por 220m, porém os amigos cismaram que abelhas estavam nos perseguindo. Saindo da mata não paramos no primeiro riacho para pegar água (afluente do Córrego da Garça) por esse motivo. Mas depois vimos que eram as malditas mutucas que não paravam de nos rodear para dar suas doídas picadas. Às 9h16 passamos por um local com uma vegetação muito diferente e frondosa, com diversas palmeiras altas, sugerindo que ali tenha existido uma casa no passado. Subimos mais um pouco e às 9h30 alcançamos a trilha principal que vai do Ribeirão Bandeirinha (esquerda/sul) à Cachoeira da Braúna (direita/norte). Estava nos planos visitar a cachoeira e lá fomos nós para a direita. Avistamos a queda bem do alto e tivemos de descer muito para chegar ao seu poço às 10h12. Mas valeu a pena!

Após o almoço decidimos que a continuação da caminhada por dentro do cânion do Córrego da Garça abaixo da cachoeira não seria muito seguro, apesar do tempo firme. Na verdade essa decisão foi minha pois eu nunca havia cruzado esse cânion, não sabia sua extensão e dificuldade, e na exploração rápida que fiz não encontrei trilhas nas encostas acima do rio. Por isso não achei seguro empreender um pula-pedra tão longo até o Ribeirão Bandeirinha com as cargueiras nas costas. Preferi subir de volta pelo mesmo caminho e descer ao Bandeirinha por um caminho mais seguro, procurando por lá uma trilha que nos levasse à Lagoa Dourada, coisa que eu já havia feito em 2012. O único porém é que eu não tinha o tracklog daquela caminhada e a memória não ajudou pois tudo parece igual no vale do Bandeirinha...

Saímos da Braúna às 13h27 e subimos toda a ladeira de pedras brancas soltas embaixo de um sol escaldante. Esperei os amigos lá no alto e fomos analisar a Serra dos Confins do outro lado do Ribeirão Bandeirinha para tentar visualizar uma trilha na direção oeste, para a Lagoa Dourada. Não vimos nada óbvio e começamos a tentar diversos caminhos. Resumindo: terminamos o dia acampando às margens do Bandeirinha sem encontrar trilha ou caminho aberto para a lagoa, apesar das várias tentativas. Altitude de 1234m.

Campos rupestres do vale do Ribeirão Bandeirinha
DIA 12 - 04/08/18 - do Ribeirão Bandeirinha a (quase) Altamira

Duração: 2h30 até o meu acampamento, antes disso foram explorações sem sucesso
Maior altitude: 1461m
Menor altitude: 1234m

Choveu boa parte da noite e amanheceu chovendo. Demoramos um pouco para sair das barracas por conta disso. Numa trégua da chuva desmontamos as barracas e saímos às 8h45 para mais tentativas de encontrar alguma trilha ou caminho aberto para a Lagoa Dourada. Seguimos todos os tracklogs que levei mas todos davam em lugares de mato fechado, morros de pedras e nada de trilha. E a chuva não parava! Esgotadas todas as alternativas imaginadas, desistimos da Lagoa Dourada (em termos...) e traçamos nosso rumo para a vila de Altamira, para ali encerrar a nossa Trans Espinhaço. Das margens do Bandeirinha subimos cerca de 1100m na direção leste e tomamos às 13h a trilha bem marcada para a direita (sul). Nessa hora o tempo mudou e por incrível que pareça em poucos minutos estávamos tirando as roupas de chuva e passando protetor solar. O caminho dali em diante foi sem surpresas. Cruzamos às 14h03 o caudaloso Bandeirinha por um local bem estreito com apenas um salto e continuamos pela trilha óbvia, quase todo o tempo em subida. Passamos por 3 pontos de água (todos afluentes do Ribeirão Bandeirinha), o último deles com gado (necessário tratar a água para beber). Às 15h30 paramos diante da placa do limite do Parque Nacional Serra do Cipó. Ali voltamos a conversar e eu manifestei a vontade de continuar a caminhada. Renato e Honda já haviam ligado o modo "voltar para casa" e estavam firmes nessa intenção. Eu lhes passei os tracklogs de como chegar a Altamira apenas por segurança e às 16h50 eles partiram, após nos despedirmos e comemorarmos com muita felicidade o sucesso da nossa Trans Espinhaço de 12 dias, um recorde de resistência para todos nós. Eu acampei no capim já amassado a poucos metros da placa do parque. Altitude de 1461m.

DIAS 13, 14 E 15 - 05 a 07/08/18 - de (quase) Altamira a São José da Serra

Nessa terceira etapa do trekking portanto eu estava solo e aproveitei para fazer as explorações que ficaram pendentes. Devo detalhar essa etapa em outro relato mas já adianto as cenas dos próximos capítulos: de (quase) Altamira peguei a trilha para a Lagoa Dourada, mas na verdade fui explorar a ligação dela com o Ribeirão Bandeirinha, dessa vez ao contrário para ver se tinha sucesso. E consegui, porém o caminho tem trechos de trilha e trechos sem trilha, com algum vara-mato leve e descidas de encostas com pedras e arbustos. Da Lagoa Dourada encerrei os meus 15 dias de caminhada descendo para São José da Serra pela trilha bem óbvia e marcada. Passei uma noite nesse vilarejo no camping Muro de Pedra e no dia seguinte às 6h20 tomei o ônibus para São José do Almeida, em seguida Belo Horizonte e de volta a São Paulo. Mas não sem antes encher a mochila de deliciosos queijos comprados no Mercado Central de BH, afinal... estava em Minas, uai!!!

Campos rupestres
Informações adicionais:

Horário do ônibus São Paulo-Diamantina (www.gontijo.com.br):
diário às 21h30

Horário do ônibus de São José da Serra ao Hotel Veraneio, São José do Almeida e Jaboticatubas (desses locais há muitos ônibus diários a Belo Horizonte):
seg a sex (exceto feriado): 6h20

Horário do ônibus de São José da Serra direto a Jaboticatubas: 
seg e qui: 7h50

A autorização para a travessia Alto do Palácio-Serra dos Alves atualmente é feita através do link: www.ecobooking.com.br/site3/destinoAtrativo.php?gHtY=ggyv4wahfnqunwgob2p0

O povoado de São José da Serra tem pelo menos 4 campings e algumas pousadas, porém agosto é baixa temporada e só consegui encontrar o Camping Muro de Pedra funcionando. O preço é R$25 por pessoa (negociável), com banho quente a R$2 a ficha que dá direito a apenas 6min. O uso do wifi custa R$5. Não havia onde jantar pois os restaurantes e bares estavam fechados, mas o dono do camping me ajudou nisso também.

Repelente é um item essencial durante a caminhada, principalmente no final da tarde e na beira de rios e cachoeiras. Os borrachudos atacam sem dó. 

Carrapatos também marcam presença nessa época mais seca, por isso é bom se precaver e dar uma olhada pelo corpo se você já não está carregando alguns deles. Eu peguei seis carrapatos durante todo o trajeto. Retiro passando álcool gel e esperando 3 minutos antes de arrancá-los, mas para quem tem alergia é bem mais complicado.

Cartas topográficas de:

As denominações de rios e serras usadas aqui foram extraídas das cartas topográficas do IBGE e podem não coincidir com as denominações dadas pelos moradores da região, ou podem mesmo estar erradas.

Rafael Santiago
agosto/2018

Percurso na carta topográfica:












9 comentários:

  1. Grande mestre Rafael!

    Que relato hein?

    Tão grande e bonito quanto nossa travessia digna de recorde.

    Primeiro gostaria de registrar que é um prazer imenso ter meu nome e da Equipe Romoaldo mencionados no seu fantástico blog. Sinto a necessidade de exaltar a grande satisfação de fazer parte de uma marca como essa na vida de um montanhista tão importante como você! Registro também que sua atuação como relator do monanhismo foi um dos grandes motivos do nascimento da Equipe Romoaldo, copiamos, reproduzimos, seguimos e aprendemos muito com seus passos, e essa linda travessia foi a oportunidade magna de aprender pessoalmente com você.

    Obrigado por toda a experiência, confiança e receptividade com a equipe, é um marco histórico para nossa equipe e para mim essa expedição.

    O relato está sensacional e aguardo ansioso para ler o "spin-off" solo dos ultimos dias. Um grande abraço.

    Renato Gamba Romano

    Equipe Romoaldo de Trekking e Montanhismmo

    http://equiperomoaldo.blogspot.com/

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    1. Puxa, Renato, o seu comentário me deixou tão contente que nem consigo escrever uma resposta à altura. Só queria dizer que fiquei muito feliz em ver que a semente que eu plantei vingou e deu ótimos frutos. Vocês são muito bons quando o assunto é trekking (principalmente com perrengue, né) e já dominam muito bem o assunto, mesmo tendo ainda poucas trilhas no currículo. Eu, como já te disse, aprendo sempre, e aprendi muito nesses ótimos 12 dias que estivemos juntos pelas paisagens mineiras. Nos últimos 3 dias solo senti bastante falta das nossas conversas e discussões a respeito dos caminhos a seguir, das trilhas a vasculhar e ao final a comemoração em grupo pelo sucesso obtido.

      Só posso agradecer pelo convite e fico aguardando nossas próximas aventuras.

      Grande abraço!

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  2. Rafael
    boa tarde
    Concordo plenamente com o amigo Renato Gamba no seu comentário, travessia sensacional, e com ótimo relato e fotos, lugar muito lindo
    Poderia passar seu e-mail por favor. Gostaria de falar sobre algumas travessias tenho interesse em participar com você nas próxima.
    Obrigado
    Marcelo da cidade de Jundiaí

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    1. Olá, Marcelo
      Obrigado pelo comentário!
      Meu e-mail é lrafael2005@yahoo.com.br.
      Abs

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  3. Rafael
    Bom dia
    Te passei e-mail para falarmos
    obrigado
    Abçs
    Marcelo

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Que louco! Haverá algo do tipo entre a segunda quinzena de dezembro e a primeira de janeiro? Gostaria muito de conhecer essas paradas.

    mutuca@mensa.org.br

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  6. Rafael, como sempre seus relatos são um show a parte. E que caminhada, hein? Recentemente também desembarquei lá no Morro do Camilinho (Contagem) e bati perna até a Lapinha, só que com bem mais pressa que vocês rs.
    Só queria confirmar uma questão com você: os ônibus em São José da Serra são só esses horários que você colocou? Alguma opção para o fim de semana?

    Forte abraço!

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    1. Olá, Hélio
      Desculpe pela demora na resposta mas é que eu estava caminhando "por aí"...
      Segundo informação do cobrador da empresa de ônibus são só esses horários mesmo. No fim de semana você pode tentar uma carona na saída do povoado ou mesmo fretar um carro (se estiver com mais gente não deve sair tão caro pra cada um) ou ainda ir na pernada mesmo, são 11km de São José da Serra até a MG-010 e pode aparecer uma carona no caminho.
      Obrigado pelos comentários!
      Abs

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